Timbrando a guitarra – Parte 1 – Conceito
Parte 1 – Princípios
Certamente essa é uma das principais preocupações do guitarrista, a qualidade do timbre de sua guitarra. Mas traduzir essa sonoridade através do equipamento pode ser trabalhoso e achar o meio de fazê-lo exige o controle de vários aspectos técnicos do maquinário, além de ouvido, referências sonoras e habilidade técnica.
Afinal, qual é o timbre ideal? É aquele que se adequa ao objetivo da música, o que tem contexto, o que favorece o instrumento e sua interpretação. É aquele que faz jus a estética da música atual e que obedece os parâmetros de exigência do ouvinte. Que vai além do esperado e que funciona de forma harmoniosa com os outros instrumentos.
Referências sonoras: Fazemos isso naturalmente ao procurar equalizar nossa guitarra próxima do som de guitarristas que admiramos e músicas que curtimos. Tentamos ao máximo enquadrar o timbre da nossa guitarra com o estilo que vamos tocar. Vários são os fatores que estimulam nossas escolhas por uma sonoridade: peso, equalização, pegada na execução, definição, ambiência, e por aí vai.
O uso dessas referências é vital pra entender o timbre que projetamos e facilitar a descoberta, além de contextualizar nossa sonoridade e adequá-la ao estilo.
Objetivo do timbre: Isso é determinante no resultado final, afinal, o que é esperado do timbre? Soar bem ou soar mal? Ser agressivo ou não? Estar em primeiro plano ou fundo? Soar como guitarra ou como outra coisa? Muitos são os tipos de música e maiores ainda as possibilidades timbrísticas. Sem definir o papel da guitarra no som fica impossível definir a qualidade do timbre.
A estética do timbre: Vou listar alguns pontos que julgo importante no timbre convencional.
– Peso: não confundir peso com quantidade de distorção, são características diferentes. Peso se refere ao espaço ocupado pelo instrumento dentro da música e seu leque dinâmico. Está relacionado com a riqueza das frequências sonoras que emite e a quantidade de informação que exala. É força e certeza, corpo, e por isso o peso também está ligado a execução. Um timbre com peso é aquele que facilmente cresce e que tem suas frequências bem definidas. Uma estrutura grave nítida, médios sem exageiros e agudos brilhantes sem serem estridentes demais, com uma boa quantidade de harmônicos.
– Definição: O conceito é simples, um timbre bem definido é aquele que possibilita escutar a guitarra e seus detalhes claramente. Para isso deve-se procurar não competir com as frequências de atuação dos outros instrumentos. Uma guitarra com grave demais confunde o baixo, com médio demais consome o arranjo da banda e com agudo demais sobrecarrega a música entrando em conflito com os harmônicos dos pratos e caixa. Por sua vez a falta de grave reduz a agressividade da guitarra, os poucos médios levam a guitarra pra trás da banda e a ausência de agudos abafa e embola a execução. Para dosar a quantidade certa de equalização deve-se levar em conta a interação com os demais instrumentos e usá-los no complemento do timbre.
– Distorção: essa funciona como uma compressão ao sinal da guitarra, então com excesso de distorção temos a perda da dinâmica e a perda da definição articulatória. De forma geral tentamos compensar falta de sustain com exageiros na distorção pra facilitar a tocabilidade e acabamos com o timbre. Para afinações graves é comum a perda da sensação de saturação que pode ser compensada com a abertura dos médios agudos sem aumento do drive. Em gravação recomendo sempre usar a guitarra com menos distorção pois a compressão na mixagem tem a tendência de adicionar saturação podendo comprometer o resultado final.
– Ambiência: Pode ser conseguida de inúmeras formas, seja com efeitos (reverb, delay) ou com o posicionamento do microfone (gravações e ao vivo com microfonação). É aconselhável ser compatível com a quantidade de ambiência dos demais instrumentos para evitar contrastes em excesso. Um exemplo: imagine uma mixagem extremamente seca seguida de um solo carregado de reverb. Como nosso ouvido é relativo e se adapta as condições impostas, ele sentirá demais a ambiência do solo por ter se adequado a referência anterior. Mesmo que, ao escutar o solo sozinho ele não pareça estar carregado, quando inserido no contexto vai gerar desconforto. Microfonações distantes também possibilitam a entrada de ruídos externos dificultando a boa mixagem da música, seja em estúdio ou ao vivo.
– Sustain: É a quantidade de harmônicos geradas pelo timbre, é a duração da nota após a execução. Pouco sustain quer dizer que o som some rapidamente após a articulação da nota, dificultando a execução. Vários fatores influenciam no sustain como:
- Quantidade de distorção – Com o aumento da distorção temos o aumento do sustain, mas deve-se evitar usar isso como fonte única de correção pois o drive em excesso reduz a definição e suja demais o som.
- Tipo de efeitos (reverb, delay, compressor) – O reverb e o delay mantém a nota soando após sua execução promovendo a sensação de sustain. O compressor aproxima a diferença de pico (volume) entre o ataque, o sustain e o decay da nota, também criando a sensação de maior duração do som.
- O tipo de frequência sonora do timbre – Timbres com pouco corpo grave e excesso em médios agudos e agudos tem a tendência de preencher de forma carente o ambiente, sendo estridentes e gerando muita microfonia. Esse som é áspero e cristalino demais nas imperfeições de execução prejudicando demais a tocabilidade. Por sua vez o excesso de grave cria um sustain indesejável decorrente da ressonância com o ambiente e com os outros instrumentos.
- Acústica do local – esse sem dúvida é um dos fatores mais importantes para a qualidade do sustain. Ambientes com projetos acústicos deficientes geram muitas ondas estacionárias que anulam ou reforçam frequências dos instrumentos, mudando completamente a qualidade tonal. Ambientes abertos facilitam a fuga do som promovendo drasticamente a redução do sustain, que deverá ser compensado artificialmente através de efeitos.
- Qualidade do equipamento – Um equipamento bem regulado, com componentes de qualidade bem ajustados evitam a perda de sustain: Madeiras mais densas, braço e trastes regulados, parte elétrica de qualidade com componentes novos, cabos blindados com metais nobres, amplificadores de qualidade e eletricidade bem fornecida são alguns dos fatores que contribuem para um resultado satisfatório. Lembre “que a corda arrebenta no ponto mais fraco”, então qualquer componente carente compromete todo o resultado.
- Volume – Com o aumento do volume há um aumento do sustain (feedback), mas volume em excesso traz mais problemas que solução, como microfonias e hum – ressonâncias graves.
– Estética: afinal a soma de todos esses fatores deve representar o tipo de idealização do guitarrista. O timbre final é aquele que, além de bem definido e construído, de fácil execução, faz jus ao esperado.
Afinal, como timbrar a guitarra?
Usando uma referência sonora:
Escolha um som de guitarra que esteja próximo ao desejado. O ideal é se o take for apenas da guitarra, pois com a banda completa boa parte do timbre se confunde com os outros instrumentos. Tente definir com exatidão as principais características.
- Distorção: Tem drive ou não? Qual a quantidade? Parece saturar mais em qual frequência? Qual a origem dessa distorção, parece saturação de válvulas ou soa eletrônico e moderno?
- Frequência principal: Para entender qual a característica de cada frequência, grave uma linha de guitarra e aplique um equalizador, alterando as frequências. Fazer esse processo é fundamental pois cada pessoa interpreta o que está ouvindo de forma diferente. Você precisa entender de que forma ouve. Minha interpretação:
Abaixo estão exemplos em audio (música Earthquake) com diferentes equalizações. Note que nenhum outro parâmetro foi modificado e a mixagem permanece a mesma.
Original:
Muito grave: embolado, denso.
Pouco grave: falta de peso, rádio antigo.
Muito médio: quebradiço, roncado, duro.
Pouco médio: longe, sem definição.
Muito agudo: estridente.
Pouco agudo: abafado.
Tablatura dos exemplos em audio
- Tipo de ambiência? Parece uma sala grande ou pequena? O ambiente tem brilho (como uma sala com azulejos) ou é escuro (abafado) ? Existem repetições no som (delay) ou a ambiência é difusa (reverb) ?
- Efeitos: Existe algum efeito aparente? É muito comum a inclusão, além de ambiências e compressão, efeitos como flanger, chorus, pitch shifter e filtros. É esse o caso? Claro, para saber definí-los você deverá conhecê-los.
- Setup: É importante conhecer quem está tocando na sua referência escolhida. Facilita bastante saber o equipamento que o guitarrista usa, como guitarras, cordas, palheta, trastes, cabos, amplificadores, falantes, microfones, técnica e tudo relacionado ao timbre. Algumas características sonoras vem do tipo de equipamento e são marcantes. Por exemplo o peso grave das guitarras Gibson, o estalado harmonioso das Fender Strato, a saturação limpa dos amplificadores valvulados, o click agudo das palhetas finas, o som metálico do flanger.
Riff de Earthquake Original:
Riff de Earthquake com Flanger:
Riff de Earthquake com Reverb:
Riff de Earthquake com Chorus:
Riff de Earthquake com Ring Modulator:
Tablatura dos exemplos em audio
Sem referência sonora:
Procure projetar o som e visualizá-lo de forma clara e racional. Responda as perguntas acima e use o mesmo processo. Outra forma é por experimentação, tentando os extremos do equipamento para definir tendências. As escolhas podem ser empíricas, tomando decisões no momento.
Evoluindo o timbre: É apenas através do uso do timbre em condições variáveis que você terá a idéia clara de como ele soa. Não tenha receio em alterá-lo, buscando seu aprimoramento. Uma coisa é timbrar com volume baixo tocando sozinho, diferente é relacionar a guitarra com outros instrumentos em volume alto. Em alguns locais o timbre pode parecer ambiente e grave demais, em outros muito seco e agudo. Afinal qual é a melhor media? Só a prática e tentativa constante dirão.
Procure sempre novas referências de qualidade: Existe muita coisa gravada! Mesmo dentro da mesma banda os guitarristas mudam o timbre a cada cd que gravam. E dentro da mesma música é comum um timbre pra base e outro para os solos. Garimpe novas sonoridades e lembre que a melhor referência não é uma única e sim a média de várias.
Escute outras pessoas: Esteja aberto a entender os comentários dos outros músicos que tocam com você. Muitas vezes na busca por um timbre perdemos a principal referência que é a do comum, do que as pessoas estão acostumadas a escutar. Mesmo leigos sabem dizer se o seu som soa legal ou não, então não despreze opiniões controversas e sem apelo técnico. Muitas vezes palavras simples de alguém que não é músico dizem muito mais. Dou um exemplo do mesmo timbre analisado por um músico e por um leigo:
Músico: “Seu timbre falta sustain e está exagerado nos médios, acho que em torno de 400 hz. Escuto uma ressonância exagerada no grave e a saturação tá muito ardida nos agudos. Tem muita presença mas sem definição. Não escuto direito os harmônicos pares e ouço sujeira no fundo. Precisa ainda de corpo e de pegada.”
Leigo: “Cara, como tá ruím o som dessa guitarra, não entendo nada.”
Enquanto o músico te atropela com várias suposições técnicas que muitas vezes não são a solução do problema, o leigo te informa claramente e de forma direta o que ouve -> não consegue entender as notas. E muitas vezes a solução é diferente do que pensamos como a execução suja do guitarrista e não o timbre.
Técnica X Timbre: O timbre pode e muitas vezes deve ser moldado de acordo com a técnica usada na execução musical. Alguns exemplos:
- Palm muting – Com saturação baixa tem a tendência de perder corpo e soar percussivo demais, sem definir claramente a nota. Com grave em excesso ressoa demais embolando o arranjo. Uma boa regulagem é aquela onde consegue-se ouvir o drive com pouca ressonância grave (sobra).
- Tapping e Two Handed Tapping – Com pouco sustain e falta de compressão exigem a aplicação exagerada de força, sujando o som e dificultando a execução. É uma técnica que tem essa tendência de sujar o som, por isso muitos guitarristas usam abafadores nas cordas. Isso pode ser contornado com a redução do drive e aumento na compressão.
- Harmônicos – Com falta de médios e agudos os harmônicos se tornam fracos. Com pouca distorção os artificiais soam estridentes e sem corpo. Normalmente resolvendo o sustain resolve-se os harmônicos, outras vezes abrindo um pouco os agudos ou aumentando o drive também.
- Palhetada – Pouco sustain dificulta e muitas vezes impossibilita uma execução confortável e limpa do fraseado. Deve-se tentar aumentar o sustain sem carregar demais na distorção, a qual já tinha sido definida.
- Articulação – se perde com distorção exagerada e com falta de médios e agudos.
Tipo de arranjo: Se a execução é com drive, com muitos acordes abertos de intervalos variados como terças e sextas, segundas e sétimas, opte por uma distorção clara e limpa (valvulada). Para estilos de música mais pesados aumente a saturação e o corpo grave, mas evite perder demais a definição entregue pelo médio. Para sons limpos procure salientar toda a gama de frequências do instrumento.
Equipamento:
Guitarras: Os instrumentos com boa construção vibram e fornecem um som mais completo. Para isso devem estar bem regulados, seus componentes em perfeito estado de funcionamento, com cordas novas e afinadas e parte elétrica de alta qualidade, bem montada.
Madeiras: As madeiras mais densas vibram de forma íntegra e fornecem maior sustain, mas tem a tendência de perder o médio. Por outro lado as madeiras leves definem bem o som do drive mas perdem corpo. Os extremos deverão ser evitados. Use mogno, marupá ou cedro para timbres com saturação definida e madeiras densas como a imbuia para corpo com sustain.
Captadores: Quando muito rebobinados saturam mais, até mesmo sem drive. Muitos são os projetos e a escolha deve se adaptar ao pretendido. Quando se busca versatilidade normalmente perde-se qualidade, então defina o captador no contexto de sua utilização. Captadores instalados muito próximos as cordas soam mais fortes mas perdem muito grave e dificultam a afinação das cordas, então procure posicioná-los pelo menos a alguns milímetros das cordas. Quanto mais grave o captador maior deverá ser essa distância, salientando sua frequência natural.
Single-> Bastante brilho e timbre quente, agudos bonitos. Tem menos corpo que o duplo e satura menos. Define muito bem sons com acordes abertos e tem boa presença. Costuma ser barulhento (hum) e gera microfonias indesejadas. Ideal para blues, rock e solos lentos.
Humbucker-> Bastante corpo com graves e satura cedo. Tem timbre mais agressivo mas agudos aveludados. É silencioso mas tende a comprimir o som reduzindo a dinâmica. Não é ideal para ser usado sem drive. Cabe muito bem com estilos agressivos como hard e metal.
Escudos (strato) e molduras de captadores: moldam a saturação gerando uma vibração de frequência rápida. Entregam sustain mas fazem o timbre perder boa parte da qualidade da madeira.
Cordas: Essa é uma velha discussão, qual o calibre ideal? Cordas mais pesadas tem timbre encorpado e salientam bem as frequências graves, mas tornam a execução de bends e partes com pegada uma tarefa penosa. Calibres leves soam mais estridentes, enferrujam mais rápidos, mas são fáceis de serem manipulados. A escolha deve ser do guitarrista, até que ponto a tocabilidade deve ser prejudicada pelo timbre?
Ação das cordas: Quando usadas muito baixas facilitam a velocidade mais dificultam os bends e tem a tendência a fazerem o som perder vida. Muito altas aumentam demais a tensão e impossibilitam uma execução confortável, além de desafinarem ao toque. Ache um ponto médio onde o timbre não fica comprometido e a tocabilidade é satisfatória.
Palheta: As finas geram notas com bastante ataque e brilho e anexam ao som um estalado típico de palheta. As grossas soam mais aveludadas e facilitam a inclusão de pegada em partes mais pesadas.
Cabos: Opte pelos blindados com um bom revestimento e bitolas em ouro (18k-24k). O cabo carrega o sinal da guitarra para o amplificador, então é vital para um timbre final decente. Evite comprimentos acima do necessário para não haver perda do sinal.
Pedais: Com construção robusta e conexões bem feitas. Dê preferência aos mais populares de marcas consolidadas e com true by-pass que mantém o sinal da guitarra inalterado quando não estão sendo usados. Evite pedais barulhentos.
Transistorizado X Valvulado: Se for possível opte sempre pelos amplificadores valvulados que entregam o som mais limpo e definido, com bastante corpo e sustain. Visite-> Transistorizado X Valvulado (breve)
Falantes: É o ponto final na cadeia de formação de timbre e deve traduzir e reproduzir com exatidão o som que recebe. Pode adicionar suas características (personalidade do falante), sem comprometer no resultado final. Com um número maior de falantes há a consolidação do grave, então deve-se evitar usar caixas com 4 falantes ou mais em ambientes pequenos.
Microfone: São usados para a captação do som em estúdio de gravação e em sonorizações ao vivo. Recomendo o uso de um microfone dinâmico como o Shure Sm57 colocado próximo ao falante (1 ou 2 cm). Quando muito próximos captam o som seco e estridente, muito longe incluem bastante ambiência e abafam os agudos. Costumo usar próximo (1 cm) mas afasto um pouco do centro do falante e angulo um pouco o bocal (15-30 graus), assim tenho bastante presença mas reduzo o estridente.
Energia elétrica: É um dos fatores que mais adiciona “sujeira” ao som. Em estúdio procure ter uma fiação exclusiva para aparelhos sonoros e prime pela qualidade dos transformadores, afinal são eles que “entregam” a energia. Os cabos de eletricidade devem ser de qualidade (caros) e isso faz toda a diferença no resultado final.
Habilidade técnica: esse é um fator fundamental para um bom resultado final. Um bom timbre também é resultado do controle pleno na execução do guitarrista, nele estão embutidos a limpeza, a pegada e a interpretação. Dois guitarristas tocando com o mesmo equipamento soam diferentes pois tocam de forma diferente.
Ouvido: Lembre que usamos o ouvido para escutar as referências e projetar um timbre, então um ouvido bem desenvolvido está mais apto a atingir um resultado satisfatório. Aprenda a escutar também de forma racional, achando palavras chave que definam as sensações recebidas.
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